As espetaculares curvas de um sorriso

Primeiro seu cheiro entrou varrendo portas, janelas e sentimentos. Bem perfumada, trajando uma camisa verde escura de gola alta, calças puídas e escurecidas pelo tempo, o cachecol e os sapatos claros e coloridos. Naquela figura todos os símbolos indicavam pistas de alguém com mistério e sedução. E envolvido por esta neblina de confiança, levei-a até o meu quarto do velho casarão lusitano, no recanto mais íntimo e hospitaleiro de minha vida. Sorrindo e familiarizada, ela respondia ao novo cenário examinando atentamente paredes, objetos decorativos, sem um indício amarelado de timidez conspurcando seu glóbulo preto nos olhos. Ainda pensativo se devia tê-la deixado entrar em minhas muralhas, fui interrompido quando ela me alcançou os braços, puxou-me em sua direção e alisou minha face. Divinamente.

Instantes depois, sentamo-nos, absorvidos pela Bachiana Brasileira n. 4 de Villa-Lobos a tocar no charmoso radio, iluminados por um abajur antiquado. Sem a mínima pressa, ela me cumprimentou olhando em minha retina e naquela altura, quando suas primeiras palavras foram assopradas, seu olhar imóvel devolvera um quente aconchego a minha timidez. À medida que ela dizia sobre seu trabalho de esculpir artes e moradias, seu olhar foi despertando uma fagulha de fascínio e obsessão. As palavras consolidam em nós, os sentimentos que guardamos às chaves e revelam o interior guardado sob o segredo e o sagrado. Naquela ocasião, constatando nascer cada sentimento, eu já começava a penetrá-la, ouvindo sua voz jovem, seu respiro delicado, sua calma em pintar cada palavra, como se fosse um versículo bíblico. E habitei, naqueles momentos, em suas palavras, enquanto ela as pronunciava. Vagarosamente. 

Ainda sorrindo, agora especialmente enfeitiçados, nos demos conta de que não trocamos nomes. E então ela me disse o seu nome com o efeito de uma mordida forte numa carne brutalmente deliciosa e tensa. E então eu disse o meu nome como a delicia de um arrepio, nada percussivo. Fui mergulhando pouco a pouco no lago de seu sorriso - que ora refletia uma velada timidez, ora era fruto de um pacto entre o escárnio e o delírio. E ela atirava seu nome, enquanto sorria e ao mesmo tempo erguera a mão e pôs a descansar seu cachecol numa cômoda próxima a cama, sob esta intimidade de quem já nasceu nua. Em silêncio ela entrou na minha vida. Eu que era impaciente, ansioso, fui me tornando um garoto, um aventureiro, menino do rio, inquieto, feroz, venerado e intenso, capaz de atravessá-la como uma resfolegante travessia a nado pelo Tejo. Ela provocou uma tempestade descontrolada dentro de mim. Eu pensava "Voulez vous couchez avec moi?" e um ruído impactante no meu peito se acendia, um arregimento dos meus músculos dos pés, um forte ressoar de braguilha em seus derradeiros minutos dantes de explodir e molhar de tesão e prazer a cama, os lençóis, as fantasias mais felizes. Ardentemente.

E então ela me deixou. Porém, com o passar dos meses, ela não foi se desintegrando delicadamente nas minhas memórias como um carvalho sendo consumido pelo fogo. Pelo contrário. O som de sua voz sacudia no mar das paixões, os pássaros voavam mudos, toda melodia era uma extensão do ruído dela, até do mais inolvivel, aquele quando ela cantou, na nossa primeira noite, uma cantoria gospel – farpas de seus lábios inudando orelhas, pescoço, toda constelação dos prazeres. E as expressões faciais dela se reproduziam pelas ruas, nas esquinas agora distantes de sua presença, no movimento das nuvens, que tatuava no céu esta obsessão, insuperável, uma doce agonia de sabê-la viva. Distantemente. 

Sentava-me na mesma poltrona de meses atrás, vodka na mão, a alimentar os ouvidos com as mesmas canções – mantinha pensamentos livres, e alçava vôos, subia escadas brancas na direção dos sonhos, arremessava de lá caixas pretas de memórias, descia as escadas verdes na direção da realidade, tudo parecia fosco, cinza, sereias e seus gemidos estancados dentro de mim, tropeçava nos astros, com a cabeça espalmada pelo cotidiano, todas as luas apagadas. Finalmente.

E então amanheceram muitos dias incolores, gosto de café na boca. O mundo é um cigarro, tragado, a espera que o tempo consuma o toco descartado. Cadeiras de balanço, cortinas amareladas, aquários das idéias sem peixes, sem vida, uma dor partida, uma fruta caída do pé, rachada, a espera de ser engolida por um desavisado, ou talvez arrastada pelo vento. A madrugada silenciosa, eu chamava por ela, febril, minha dor era a dor da lua, escurecida, no negro dos calores. Livros mudos. A palavra morta sob um roseiral de histórias não vividas. “Não me deixe”, eu gritava. Embrutecido. Suando. Friamente.

Águas de fevereiro molharam o chão. Choveu por dias. Numa terça, como tantas outras, amanheceu. Muito embora, o sol envaidecido começava a espanar o frio. Abri estantes, gaiolas, janelas e flores, umedeci as frutas vermelhas, lancei bacias de lágrimas no mar, o sal marítimo purificava as saudades, arrepios na pele novamente, um carnaval no corpo. “Nunca será igual”, parei e pensei, diante do mar imenso. É como a história de um navegador. Um mar escancarado a sua frente, pernas abertas, horizontes tórridos o aguarda, a bússola apontando novos caminhos, talvez mais enriquecidos, mas seu olhar e ilusão afundam-se na última ilha que estacou os pés. Para consigo mesmo, mente.

Deito minha cabeça na embarcação, feito Noé a espera que a chuva cesse e um novo mundo possa despertar do velho mundo. Toda minha ligeira simpatia por recomeços torna-se um vulto que se aproxima. Me envolvo, no entanto, à última valsa, a do barco, no salão de jantares onde toca a melancólica canção “A Wolf at the Door”, e duas estátuas se beijam. A vida me pede controle. Vou ao meio do salão, encerro minha dor ali, entre as cores da música a anunciar o carnaval, arquejo passos de samba. E entre o prelúdio de novos tempos, o menino do rio torna-se o senhor dos mares. A maré vira. Brutalmente.

Bruno Silva

1 comentários:

Anônimo disse...

Quanta ponderação e previsão de sentimentos.
realmente impressionante.

Uma pessoa me disse, certa vez: não esconda seus sentimentos atrás da razão, pelo medo da dor. Entrega-se e viva, porque vida sem sentimentos e realismo,não é vida.

Foi bom (re)lê-lo

Clarice