Vinis Pintados


Há sempre o gosto improvável quando se enfrenta o novo.  E o paladar de Iago estava dormente com tanta novidade. Filho de pais divorciados, Iago conviveu com a mudança temperamental de dois lares, duas famílias, sempre duas formas ideais de viver – quase sempre opostas – apresentadas ora por seu pai, um escrito fracassado outrora por sua mãe, uma bela atriz premiada.

Duas maneiras de organizar as roupas na mala, dois jeitos de se vestir: um mais desgrenhado, com roupas que tinham uma combinação particular, sugerido por seu pai; e o outro impecável e meigo, quando sob a influência de sua mãe, vestindo-o com linho e seda.

Aos quinze anos bebeu e fumou cigarros na companhia de seu pai, sempre desafiado por suas questões filosóficas, emblemáticas mas que não pertenciam a ordem do dia-dia. E também ouviu operetas estelares, traçou metas de carreira para ser um diplomata e criou singulares arranjos musicais sob o olhar curioso e materno.

Aos dezoito participou de orgias malabares no bairro da lapa, freqüentou casas noturnas e iludiu doces virgens ao luar, sob o apoio incondicional paterno. Mas também planejou ambiciosos laços matrimoniais com a garota mais rica da cidade, abraçou inimigos e tossiu muitas vezes a própria mentira social no banheiro – sem que ninguém pudesse desmascarar o sangue rancoroso que guardava no pulmão por toda aquela velha gente do teatro.

Seu pai foi, na década de 70, um fascinante escritor colérico, fatalista e vital para aqueles tempos. A melancolia de suas obras e peças esgarçava até o mais ignóbil espectador e suas tramas ardiam luminosos nos palcos cariocas. Mesmo quando não era reconhecida, sua mãe sempre teve os melhores papeis nas peças de seu então namorado, foi ele que a projetou. Seu talento dramático era pífio e o que valorizava suas apresentações era o inebriante par de coxas aveludadas e seus olhares decadentes, eivado de doçura, silêncio e a mais doce e pura nostalgia. 

A partilha de bens foi o momento mais espetacular da separação. E talvez o mais revelador. Onde garras se desocultaram e treparam na garganta um do outro. O pai, doce e tão decadente quanto os olhos da moça, foi simples e desejava somente que pudesse ficar com o filho pequeno. A mãe, ambiciosa e feérica, esgotou todas as vias judiciais, até que não restasse o mais mísero centavo no bolso do ex-marido, esta entidade monstruosa e inóspita.

O filho, adormecido pelas decisões que não eram suas, foi carregado para todos os cantos, até que esculpiu-lhe a face de um rapaz de dezesseis anos.

A decadência é uma margem do rio. A outra é a ordem, o sucesso, a garantia de felicidade terrena. Mas o filho era um rio partido ao meio. Estava infiltrado em sua alma uma ponta firme e polida das coisas que lhe fariam ser um sucesso, um brilhante diplomata, devoto a sua pátria, estudioso dos idiomas, amante da paz e solidariedade. Mas em suas costas desabrochavam asas negras, inquietantes, dispostas a fazer vôos pelo submundo, pelo velho mundo. 

Finalmente era a hora do filho escolher um lado. Fez-se sob seus ombros o incorrigível fardo da dúvida. Por onde ir? Pelo que optar? A certeza letárgica e imóvel do sucesso ou a surpresa da decadência, o tiro no escuro? Sentia-se um vinil escuro com dois lados tocáveis, um com as mágicas e sonoras execuções de Nessun Dorma e a outra face com o implacável e rebelde som de Pink Floyd. 

A resposta veio sonora e sensual como o pio de uma coruja lunática. Não foi uma resposta que ensejasse solução, porque nem todas as tramas são finalizadas. Mas foi o bastante para adiar a dúvida e encorajar o filho a seguir assim, um disco dupla-face, sem embaraços e envolvido por estas contradições milenares que nos seguem. Foi no lindo assobiar da garçonete, que lhe oferecia o décimo copo de run, que o filho despedira-se da dor e da vaidade de querer ser um. Com os olhos nos movimentos da garçonete, suas frondosas pernas titubeando passos angelicais, cabelos vermelhos decaídos, os olhos experimentando um misto de fúria e passividade. E foi dela, com tudo que tinha direito, que alimentara-se da dubiedade que nos convém.  E que dubiedade.

(Bruno Silva - 09/06/12)

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