Ode a Lua

Fases-Da-Lua-2013Ode a Lua
Anoiteceu. O vento sacode porções de água no mar, desenha pequenos relevos negros no oceano. Estamos eu e Fábio, amigo de longa data na sacada de minha suíte no Palácio Oceânico. Viemos juntos com nossas mulheres passar um final de semana apreciando as praias de Aracaju, as belas pedras que as decoram. Eu sou Agente Federal, a muitos anos na mesma função, prendendo e amordaçando traficantes de drogas. No Brasil, os cartéis mais famosos cuja estrutura eu e minha equipe desmotamos, foram os que se articulavam no Rio de Janeiro. Todos nós moramos no Rio. Minha mulher pinta quadros para a pequena burguesia – ou a classe média ascendente – que aprecia arte ou que finge gostar. Trafegamos a alta sociedade carioca, embora em nós vive o lampejo de largar toda aquela postura social e vivermos numa ilha semi-deserta, de preferência Caribe, para mim, costa do Brasil, para ela.

Trouxemos este casal de amigos, Fábio e Luciana, porque são pessoas completamente diferentes de nós. Ele é advogado – gestos rudes e aparenta ter quarenta, mas sustenta trinta anos naqueles cabeços semi-embranquecidos, tem porte europeu e uma argumentação poderosa. A Luciana é riquíssima, tem gestos bem doces, uma mulher sutil, bem elegante, embora de uma simplicidade apostolar. São um casal bem normal. Estamos hospedados num hotel de fronte a orla. Estou escrevendo isso enquanto me lembro da noite de ontem que se reúne, vagarosamente, na minha memória com detalhes saborosos, impronunciáveis de boca alta, porém ainda em pequenos trechos e flashes.

Saímos ontem, eu e Fábio, e deixamos Luciana e minha mulher, a Sabine, dormindo. Queríamos sentir a noite tropical de Aracaju. Apanhamos um taxi, felizes, discutindo para aonde iríamos. Eu abotoava a camisa azul folgadíssima quando Fábio propôs um barzinho ao fim da Orla, ensandecido, quente e que batucava ao longe. Assenti com a cabeça e só voltei oferecer resposta quando garçom me ofereceu a bebida mais quente do cardápio.

- Estamos servindo uma boa cachaça mineira - , disse ele convidativo.

O asco me corroeu por dentro. Respondi sem expressão nenhuma, embora o ímpeto era de ranger os dentes, estirar o dedo na cara do garçom e futucar-lhe os olhos de peixe morto que detém na fuça. Detesto algumas coisas, dentre elas garçons desinibidos, sem o requinte e a educação necessária. Me contive. Esqueci olhando, juntamente com Fábio, duas gazelas dançarem na mesa ao lado. Espiei o Fábio molhar os lábios – como quem deseja devorar uma bela moça. A esta altura da noite, tomando uns drinks, os instintos acesos, as palavras eram, sim, mais implacáveis e pouco civilizadas. Retrato-as aqui com a fidelidade de um bêbado que acorda, no dia seguinte, nu de pensamentos. Muito embora da minha sacada vejo a lua montar seu espetáculo, e isto me provoca a fonte das memórias, trazendo-as como que lavadas e enxaguadas, limpas e, sobretudo, dispostas deitar no papel.
 
- Chegaremos nelas ou esperaremos a lua mudar de cor? – disse a Fábio com meu tom habitual.
- Demorou. Estou ótimo. Vamos. – respondeu veemente.

Nos encostamos com a firmeza que nos é característica, a esta hora vi deslizar o sorriso das moças quando nos aproximamos. Estas mulheres adoram uma platéia feito nós. Porte de grã-fino, bem alinhados e, obviamente, com palavras que escorregam em seus ouvidos.
 
- Podemos contemplar este pequeno e íntimo show de vocês? – Disse Fábio em tom audível.
- Claro. – respondeu balançando a cabeça a quem futuramente saberemos ser Arlete.

Ficamos alguns minutos na suave dança do flerte visual. Uivamos. Insistimos. E cultivamos, após todo aquele desprezo inicial feminino, algumas respostas. Arlete era atriz regional, traços fortes, morena, cabelos cacheados, os olhos como que duas pedras esmeraldas pregadas na face, as pernas macias como duas almofadas persas e os seios abundantes, espalhados naquele decote. Provocativa e falastrona sugeriu-nos logo a sentar. Estavam no passeio habitual. Eram elas de lá de Aracaju mesmo e nos confessou que aquele bar era seu canto predileto. A outra, cujo nome é dispensável, mau falava e foi a quem Fábio desejou de primeira. Eu aprecio mulheres que sabem conversar. Fábio não. Em alguns instantes só restara na mesa eu, Arlete e aquele violento apetite.

Passamos algumas horas entre conversas, afagos e passos de dança. Arlete era mesmo intensa e feérica. Tive de me valer da hipocrisia feminina, confessando-lhe paixão de primeira vista, palavras irresistíveis, gestos sinceros, doces mentiras, tudo que ela desejara ouvir – e que juro estar sentindo naquele instante, leitor. E isto me rendeu algumas horas a mais com ela em profundidades donde a luz da lua nunca alcançara. Foram bons momentos. Fatos amorosos impronunciáveis se sucederam. Ao fim da madrugada, já bastante ébrios, nos despedimos, e nem se quer peguei um telefone, email, qualquer coisa que prove que ela existiu. Preferimos assim. Sou casado. Amo minha mulher.

Encontrei Fábio, há poucas horas atrás, no jantar. Nossas mulheres disseram que estão se divertindo muito com os temperos de Aracaju. Nós também. E não é por menos. Agora mesmo, enquanto ouço da sacada ondas explodir docemente provocando um estardalhaço noturno e este azulado da lua invadir o piso do quarto e juntamente o meu ser, persigo a ideia de que nada melhor que uma noite tropical para fazer escorregar os dias.

0 comentários: