Dedos Trêmulos

Reparo uma moça passar a oito meses. Costumeiramente às sete horas da manha. Ela passeia, vaidosa e sonolenta, pelas ruas de minha cidade e pelas vielas de meu pensamento sinuoso. É deslumbrante vê-la como uma película, fina e delicada, atravessando mafiosa a avenida de meu sonho e dando certa graça ao aspecto encardido de minhas fantasias. Nesse sonho ouso tocá-la. Sinto, na ponta dos dedos trêmulos, aquela pele que reveste a delicia de um ser. No sonho devasso chego a arfar, no canto de seu ouvido, uma opinião boba de um passante. Chego a dizer “cuidado com essa lateral da calçada”, num tiro oco e agitado. Consigo, no bendito sonho, receber dois segundos de um olhar que tenho em mim eterno. Um olhar enviesado, indireto, torcido, com o par de olhos a mirar o além, seguido por um “obrigado, senhor” lento e demorado assoprados de uma vez só, sem qualquer piedade. Reajo como quem aproveita o máximo daqueles dois segundos perenes ou como quem tem cravado um punhal de instantes no peito.

Sentado de meu passeio, eu alucino todas as minhas manhãs e perverto todas as minhas madrugadas de histórias imaginárias jorradas daquele olhar. Fico meia hora perturbado, quase sentindo o rastro de suas passadas. O coração palpita forte, corajoso, vivo. E ela passa estonteante pra buscar a sua habitual sacola de pães. Nem sei onde ela mora. Minha ilusão não me permite passar daquele momento. Segui-la seria, facilmente, entediante. Quero tê-la sempre na escassez. Só um pouco dela, feito o vinho que umedece o paladar para o banquete por vir. Feito o pôr-do-sol que se torna especial por ter pouco tempo em sua estréia vespertina. Todo fim de tarde um novo crepúsculo surge apenas pra nos inculcar a imortalidade de alguns minutos. E são esses minutos, quando ela desfila, que me embriaga de emoção.

(Bruno Silva)

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