Extinções



"Adormecido, o trapo entra em cena, abatido, resvalido, resignado ao seu cravado destino de sujeito do nordeste. Perante a seca e a fome, suas palavras minguavam como uma fonte vazia, sua pele cada vez mais pálida exprimia manchas vermelhas provocadas pelo sol a que se expunha todos os dias no trabalho. O pobre sujeito não escrevia seu proprio nome porque considerava uma frase torpe. Sua fala engasgada, sempre abafada pelo pano que mantinha na boca, babando, balbuciando umas poucas sentencas, as vezes um sim senhor, canhestro e duro, cordial e mortificado, destacando uma subordinação digna de escravidão. Um dia achou um pedaço amarelado de jornal dependurado num galho de macacheira e sucumbiu a olhar a imagem cuja beleza até o trapo conhecia, um homem gozando de elegante Armani, empunhando uma bandeira verde e amarela, embora esfumaçada pela má condição do folhetim esmagado, despertou no sujeito uma curiosidade ancestral pelo que dizia a manchete. Empenhou-se em compreender letra a letra, ele, que por ser quase analfabeto, e não inteiro, não gozou do direito a uma educação projetada para os famintos, os eunucos no mundo das letras. E então quando seu quase analfabetismo foi obstáculo do privilégio, agora o mesmo quase franqueou-lhe a habilidade de unir letra a letra até formar uma palavra. Foi construindo silaba por silaba que ele chegou a uma frase completa, mesmo sob o sol escaldante do nordeste, vitima da fome diária com que enfrentava as jornadas intermináveis de trabalhado, ainda assim ele obteve o luxo de ler a manchete completa. E com a voz embargada, as letras refletidas nos olhos manchados de uma lágrima muito literária, o perfume ardido do seu suor, os cabelos tomando rosto e corpo, o trapo alteou a voz e expulsou com o pulmão em riste a frase que dizia: "A fome do nordeste foi extinta". Sua vida, que continuava tão seca quanto a fonte, contrastava com o clarão do sol que a poeira revelava. Como nunca ouvira a palavra "extinta", morreu sem diferenciar o que é verdade e o que é noticia na politica brasileira."

1 comentários:

Danilo Moreira disse...

Quantos mais ainda morrerão sem saber essa diferença.

O pior é que essa situação só existe ainda por meros interesses políticos.

Saudades de passar por aqui. Quando puder dá uma passada lá no blog. Tem post novo.

Abçs!

Danilo Moreira
http://blogpontotres.blogspot.com.br/