O poeta que não sabe usar as palavras.

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     Mariana chegou com uma demora peculiar às pessoas que escondem rancor. Não queria parecer interessada no encontro. Nem manter interesse sobre os rumos dele. No entanto, não conseguiu convencer suas reações. E sua face dissimulada por sua vez entregou todo o jogo. Antonio de Mello, ainda assim, parecia calmo e sereno, sentado no banco de pedra da praça central. Aquela de sempre. Dos afagos, abraços, beijos, apertos e cantos dos pássaros. Era primavera, o que tornara o ambiente insuportavelmente bonito para ser cenário de tal ato. Um sorriso impenetrável aconchegou ambos os olhos que se encontraram e se alisaram. Ele e ela, apesar de mais velhos, ainda guardavam no olhar, a fome jovem de sua antiga paixão. Antiga? Começaram as indagações indizíveis.
     Cumprimentaram-se com uma mera sutileza, da qual se orgulhavam muito e anunciava a maneira correta de se tratar para conversar um assunto tão delicado que são os fatos do passado. Estremeceram um sorriso. E vasculharam a profundidade do olhar do outro, numa avidez desconcertante.
- Que bons ventos a trazem? - Falou Antonio, no vicio de fazer parecer tudo um grande acaso.
- Não estou disposta a dar asas à poesia de suas palavras, Antonio, sejamos o tanto objetivo que tal circunstância nos obriga a ser – respondeu Mariana com a voz objetiva das que tomam a decisão.
- Concordo com sua posição, mas não façamos da vida um filme já visto, sem novidades e obvio aos nossos olhos. Ainda assim não me deixe ultrapassar o limite que a poesia me permite. – Assentiu ele com sofisticada ironia.

- Antonio, você sempre foi assim. – Disse ela produzindo algum sentimento.
- Assim como? - Perquiriu Mello com a voz embargada e como se quisesse insultá-la fazendo-a relembrar suas façanhas. Ele era bom nisso. Dava gosto de vê-lo trajando a mascara do deboche.
- Escondendo-se detrás dessas suas palavras floreadas e esnobes. Eu detesto esse seu jeito. Eu posso ver isso agora com clareza. Eu odeio essa forma insultante de lidar com as palavras, de precisá-las com a prudência indecente de quem as esquartejam. Eu não o quero na minha vida novamente, senhor Mello, saiba disso adiantado. Não aguento o som roco de sua fala. – Desabou Mariana - esse seu olhar que absorve as situações e as escarram ao seu modo. Seu sorriso cínico, ele me provoca as piores sensações. E se você quer saber, eu não preciso de bonitas palavras para dizer a verdade na sua cara. E quero que faça o mesmo. A verdade não é vaidosa, meu caro, e eu detesto quando você faz dela, algo intocável, idílico. Pois bem. A verdade é simples, caro menestrel, eu lhe odiei desde o primeiro instante que percebi que minha vida estava mergulhada no seu mar de angústias. Fui infeliz de tê-lo aceito na minha vida, e não quero você de volta. Nem se fosse possível retirar os elementos que odeio em você... porque odeio você como como como – gaguejou em fraquejo –como quem odeia a própria alma pecaminosa – Berrou, murmurando em soluços.
     Os olhos de Antonio se iluminaram como se eles fossem expostos a claridade danosa da verdade. Deve agora o leitor ta pensando que Antonio está prestes a indignar-se. Oh pobre leitor que acredita em Antonio.
- É isso que você tem a dizer depois de tanto tempo? – foi o que Mello disse. Prolatou atribuindo certo peso em sua voz. Um grave desenfreado que deixava o seu tom enfático, embora ingênuo. Franziu a testa sem saber mais o que dizer. Deixou as linhas de seu semblante expostas a nudez virgem de seu descontrole.
- É, senhor Mello. Você é dono de si, senhor de seus próprios caminhos. Pois então, eu também o fui dos meus. Não quis você, e na hora certa o deixei aqui. – Disse ela confundindo o assunto em questão. - Você vive dentro de uma caixa mágica, da qual não se respira o ar da realidade. Por favor, reprima esse sorriso vadio! – falou sobre a reação que Antonio libertara ao ouvir tais palavras - não minta uma alegria. Odeio você – Sentenciou aos berros. Odeio com todos os sentimentos que já tive por você unidos. – Decretou aos solapos.
     No mesmo instante, fez-se aquele silêncio de túmulo: rasgante, forçoso, triste. Velavam o enterro daquela amizade bem numa tarde fria, a chuva acenando no céu, os pássaros ressabiando o canto de sempre, o chão se afastando dos pés. Queriam voar, desejavam os confins da terra a estar ali, expostos à beleza nua daquela praça.
- A verdade te parece óbvia, Mariana. Pois faça prova dela, descasque-a, desembrulhe-a. Conte-me com o requinte de detalhes, aponte pra mim os motivos, apenas os benditos motivos de você ter me deixado - Disse Mello gesticulando teatralmente os lábios, e com os olhos envenenados de vingança.
-Retirando um cigarro do bolso, a conversa encheu-se de cerimônia. Ele sorrindo em desalento, e ela fumando irrefletidamente fugindo de si.
- Seu canalha! – Berrou apoiando o cigarro dentre os dedos. Sugando o ar que lhe restara.
     Ele aquiesceu borrando os olhos de lágrimas. E numa tola tentativa de resgatar as gotas dos cílios fechou abruptamente as pálpebras. Tornando tanto medo em estupidez. As lágrimas nessas horas deveriam jorrar. No entanto, a amadourice faz os homens não desfrutarem dos momentos em que estão incluidos.
- Você me quer crua nesse seu sonho insano. Crua como as asas de uma galinha viva. Só pra me arruinar e depois rir de mim. – Disse como se tivesse tirando sarro das tantas histórias que Mello escrevera para a ela. Após dizer atirou o cigarro no chão pisando-o com ferocidade canina.
- Eu odeio você. E não preciso de fundamentos para isso. Nem se quer preciso lhe dar os motivos de qualquer ato meu. Minha vida é minha vida. Isso basta. Isso esgota qualquer possibilidade e tendência deu lhe render qualquer justificativa. Seu escritorzinho profano. Seu falso gentil. Seu estúpido romântico. Você envergonha os poetas. Odeio você e ponto. – Relatou Mariana inquestionável de sí, deixando as lágrimas escorrerem e limparem o batom cinza borrado de seu rosto. Ela estava entregue ao ódio mortífero que cultivara.
     Embora fosse desejo do autor que esse encontro rendesse mais que ódio. Salve, caro leitor, Mariana desse oceano de ódio em que está envolvida. Salve-a levando os rumos dessa conversa para outras direções. Termine o conto imaginando-a debruçada sobre seus arrependimentos; ele, ofegante, aparando suas próprias palavras e efetuando nela um beijo de exaustão. Um beijo fatalista. Que faz qualquer ódio tornar-se o mais belo e vulgar dos sentimentos: o amor.

Bruno Silva

Deusa da minha rua – Geraldo e Yamandu

2 comentários:

Uma rosa qualquer disse...

Falaremos sobre a despretensão de Antônio?

"- Que bons ventos a trazem? - Falou Antonio, no vicio de fazer parecer tudo um grande acaso. "

...

Gosto de textos que fazem cenas passarem lentamente sobre os meus olhos.Bom lê-los , bom vê-las!

Mariana disse...

Eu fui ao teu encontro. Quando cheguei já estavas assentado em uma das mesas do bar. Você olhava o nada e fumava um cigarro. Não sei por que fui, nem se me aguardavas, talvez eu encontrasse todas as respostas no decorrer de uma conversa. E haveria conversa? Como de costume, o normal seria o silêncio nos fazendo sala, mas até que dessa vez foi diferente, me falastes o quanto estavas se sentindo bem e eu falei do quanto aquele lugar me inspirava. Não houve reciprocidade, tuas palavras se perdiam entre as minhas e vice-versa. Lembro de ter ficado horas te olhando enquanto tu olhavas o chão,cheguei a me sentir como qualquer pedra que estava, ali, caída , indiferente, e acabei percebendo que as coisas já não eram mais as mesmas, nós dois já não éramos, já não havia qualquer tipo de ligação, teus olhos fugiam dos meus e os meus só queriam um motivo pra não te encarar. E depois de nada, tudo seria um fantasmagórico exagero .Me dissestes que o melhor seria eu ir embora daquele lugar, que já não havia mais amizade, nem afeto, nem nada. Virei às costas e parti. Olhando pra trás eu só pude ver teu corpo sobre o chão pedindo por, pelo menos, um pouco de mim.Seu olhar era suplicante. Tentei voltar, juro, mas antes que eu desse um passo pra trás, acordei.