Minha terra tem palmeiras

Texto 10


Em julho de 1843, provavelmente numa tarde ensolarada de Portugal, onde se encerra o espetáculo do sol já bem depois das seis da tarde, pairava nas ruas coimbrenses um sabor impermeável de nostalgia. Descendo, quem sabe,  as escadas monumentais, um sujeito derruba seu livro em meio aos degraus, distraído e fascinado pelo brilho crepuscular escalado naquele entardecer. Talvez procurava um lugar para descansar os papeis pesados, catatal volumoso que fora buscar na biblioteca para mais um fim de semana embriagado em literatura, boemia e saudade do Brasil.



Apoiando-se nas encostas das monumentais, o poeta esqueceu-se ali, parado, compenetrado entre um raio solar e uma vaga ilusão de que havia uma terra natal, tropical e quente, a sua espera. Enquanto contava os 125 degraus esculturados no chão, no clima fazia-se mornos dez graus, um frio cinzento e fresco, quando uma folha úmida varrera o chão gasto e acimentado. Deste impacto, o poeta absorveu uma irresistível vontade de praticar seu ofício, a luxuria espetacular que sua pena fazia no papel, riscando-o e arriscando a vida do poeta a ser uma arfante testemunha do sentimento de saudade. Foi ao anoitecer que o poeta firmou o braço e finalizou seus versos e foi ainda orbitando dentre seus pensamentos que espetou a última palavra no caderno. Gonçalves Dias, que eternizou a saudade da terra natal em sua Canção de Exilio, sem delongas, e com doçura, nos transformou e nos vestiu com a capa de herdeiros diretos desta agonia que perece o sujeito que ao retornar para suas raízes e vê-las com os olhos de molho, distante dos exageros dos parágrafos, depara-se com uma realidade por vezes difícil demasiadamente de superar as belezas da literatura. 



Foi contracenando com esta agonia que voltei, no último fevereiro, para o berço carnavalesco de minha Bahia. No último dia de folia, em Salvador, antes mesmo de que as cinzas se derramassem na urbanidade soteropolitana e fosse decretado o despejo sensual do rei momo, cuja vida mansa e burlesca seria deposta, foi ainda sentindo o último ressoar de trios elétricos que pousei na capital baiana, com o coração embebido em memórias, com a alma desperta e numa pretensão absurda de deixar no aeroporto a agonia do retornar. Felizmente, as memórias brancas do frio europeu estariam espalhadas pelos meus hábitos, vícios, conversas, textos, e sim, caros leitores, estas memórias brancas – que nestes dias que sucederam a minha chegada tanto me renderam conversas e poesias - também me torturaram, como num fado tropical, cantado por um tal de Chico Buarque, quando ao lembrando do seu exilio, o intérprete assume a dose de lirismo que herdara dos portugueses, “além da sífilis, é claro”. E entre uma nota trêmula e outra de fado que nós, repatriados, desabotoamos as tão recentes vivências, chocados com a bruta realidade de um Brasil, que em nossa mente saudosista, ostentava um colar florido – e somos levados a concluir que em nossa distração, do outro lado do mar, fomos nós mesmo que pusemos todas suas flores, uma a uma, ilusoriamente. 



Quando arremessamos os casacos de inverno, os apetrechos essenciais do frio, e os enterramos numa mala que mal veremos nos próximos meses, a experiência de retorno se materializa. Estivemos mergulhados numa outra cultura, rotinas outras, pessoas outras, uma língua com corpo diferente, aquela solidão compartilhada por brasileiros e brasileiras que tomam uns copos em bares, pubs, que frequentavam as boites juntos, intensos em sua medida, inseparáveis do Skype; que lia, dentre uma aula portuguesa e outra, um verso de Drummond, ouvia uma música de Vinicius, ou até zapeava os vídeos populares no Brasil, só pra não esquecer que deixaram aquecido um lugar inteiramente seu. E nesta sombra se compõe os versos mais exagerados - como os retratados no título - belos em sua essência delirante, descrevendo pássaros que, ao retornar, nem mantém a força de seu canto. A realidade brasileira, permeada de Felicianos e politiqueiros, poluição e esgotos expostos, velhas putas e putas velhas, derrama sobre sua cabeça um caldeirão nada divertido. Então concluindo que Alice é obra de ficção e não poderemos nos albergar na literatura – não sem nos desconectar da mil mazelas a que a carne é sujeita – enfrentamo-la. Todos os dias. Voltamos aos parentes. Contamos novidades consideradas exóticas. Praticamos hábitos, por alguns dias, inadequados – como minha sede de chá num calor de quarenta graus. Estudamos. Se não nos ferimos atropelados, voltamos a compreender que o trânsito brasileiro continua uma estupidez. Trabalhamos. Voltamos a rir de velhas piadas. E a marca do intercâmbio, vivo em cada folículo de memória, vai se escanteando para dar lugar ao imbatível presente. 

A experiência de lá nunca será escrita, falada ou cantada em toda sua grandiosidade. E nos restará recuperar-nos da vertigem, superar a agonia, esquecer os males e viver brutalmente sentindo saudade, quiçá de pessoas que você nunca mais vai ver... Será então tempo de germinar um último texto, aquele colhido do amor entre a poesia e a realidade, e dizer que se começa um novo exílio, em nossa pátria, em nossa raiz, em nossa cristalizada memória. Portugal viverá em nós: em mim e no poeta.


(Bruno Silva - Abril de 2013)

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