Apoiando-se nas encostas das monumentais, o poeta esqueceu-se ali, parado, compenetrado entre um raio solar e uma vaga ilusão de que havia uma terra natal, tropical e quente, a sua espera. Enquanto contava os 125 degraus esculturados no chão, no clima fazia-se mornos dez graus, um frio cinzento e fresco, quando uma folha úmida varrera o chão gasto e acimentado. Deste impacto, o poeta absorveu uma irresistível vontade de praticar seu ofício, a luxuria espetacular que sua pena fazia no papel, riscando-o e arriscando a vida do poeta a ser uma arfante testemunha do sentimento de saudade. Foi ao anoitecer que o poeta firmou o braço e finalizou seus versos e foi ainda orbitando dentre seus pensamentos que espetou a última palavra no caderno. Gonçalves Dias, que eternizou a saudade da terra natal em sua Canção de Exilio, sem delongas, e com doçura, nos transformou e nos vestiu com a capa de herdeiros diretos desta agonia que perece o sujeito que ao retornar para suas raízes e vê-las com os olhos de molho, distante dos exageros dos parágrafos, depara-se com uma realidade por vezes difícil demasiadamente de superar as belezas da literatura.
Foi contracenando com esta agonia que voltei, no último fevereiro, para o berço carnavalesco de minha Bahia. No último dia de folia, em Salvador, antes mesmo de que as cinzas se derramassem na urbanidade soteropolitana e fosse decretado o despejo sensual do rei momo, cuja vida mansa e burlesca seria deposta, foi ainda sentindo o último ressoar de trios elétricos que pousei na capital baiana, com o coração embebido em memórias, com a alma desperta e numa pretensão absurda de deixar no aeroporto a agonia do retornar. Felizmente, as memórias brancas do frio europeu estariam espalhadas pelos meus hábitos, vícios, conversas, textos, e sim, caros leitores, estas memórias brancas – que nestes dias que sucederam a minha chegada tanto me renderam conversas e poesias - também me torturaram, como num fado tropical, cantado por um tal de Chico Buarque, quando ao lembrando do seu exilio, o intérprete assume a dose de lirismo que herdara dos portugueses, “além da sífilis, é claro”. E entre uma nota trêmula e outra de fado que nós, repatriados, desabotoamos as tão recentes vivências, chocados com a bruta realidade de um Brasil, que em nossa mente saudosista, ostentava um colar florido – e somos levados a concluir que em nossa distração, do outro lado do mar, fomos nós mesmo que pusemos todas suas flores, uma a uma, ilusoriamente.
Quando arremessamos os casacos de inverno, os apetrechos essenciais do frio, e os enterramos numa mala que mal veremos nos próximos meses, a experiência de retorno se materializa. Estivemos mergulhados numa outra cultura, rotinas outras, pessoas outras, uma língua com corpo diferente, aquela solidão compartilhada por brasileiros e brasileiras que tomam uns copos em bares, pubs, que frequentavam as boites juntos, intensos em sua medida, inseparáveis do Skype; que lia, dentre uma aula portuguesa e outra, um verso de Drummond, ouvia uma música de Vinicius, ou até zapeava os vídeos populares no Brasil, só pra não esquecer que deixaram aquecido um lugar inteiramente seu. E nesta sombra se compõe os versos mais exagerados - como os retratados no título - belos em sua essência delirante, descrevendo pássaros que, ao retornar, nem mantém a força de seu canto. A realidade brasileira, permeada de Felicianos e politiqueiros, poluição e esgotos expostos, velhas putas e putas velhas, derrama sobre sua cabeça um caldeirão nada divertido. Então concluindo que Alice é obra de ficção e não poderemos nos albergar na literatura – não sem nos desconectar da mil mazelas a que a carne é sujeita – enfrentamo-la. Todos os dias. Voltamos aos parentes. Contamos novidades consideradas exóticas. Praticamos hábitos, por alguns dias, inadequados – como minha sede de chá num calor de quarenta graus. Estudamos. Se não nos ferimos atropelados, voltamos a compreender que o trânsito brasileiro continua uma estupidez. Trabalhamos. Voltamos a rir de velhas piadas. E a marca do intercâmbio, vivo em cada folículo de memória, vai se escanteando para dar lugar ao imbatível presente.
A experiência de lá nunca será escrita, falada ou cantada em toda sua grandiosidade. E nos restará recuperar-nos da vertigem, superar a agonia, esquecer os males e viver brutalmente sentindo saudade, quiçá de pessoas que você nunca mais vai ver... Será então tempo de germinar um último texto, aquele colhido do amor entre a poesia e a realidade, e dizer que se começa um novo exílio, em nossa pátria, em nossa raiz, em nossa cristalizada memória. Portugal viverá em nós: em mim e no poeta.
(Bruno Silva - Abril de 2013)
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