olhares e delírios.

O verão.

Verão. Era uma daquelas tardes de dezembro imersas de expectativas. Voluntariamente ou não, o fato é que todo mundo deseja viver algo de novo no verão. O verão trás uma tranquilidade insuportável. As pessoas se sentem mais saudáveis e incontáveis são as tentativas frustradas de repaginar a rotina. Embora, no caso que agora pretendo expor sucedeu diferente.

O jovem Ray sabia em que tédio estavam metidas suas merecidas férias do colegial. Acabara de vencer a primeira etapa dos estudos e então partia pra um nova fase de sua vida que imaginava diferente de tudo que já viveu. Logo veio a decepção. As pessoas são, em qualquer estágio ou fase, desinteressantes. Sonham pouco e contentam-se com os resquícios de novidades que lhes restam. Não, não sou eu que digo isso, foi o que constatou ele no primeiro verão após seu ano de entrada no colegial. As meninas agora tinham peitos. E podiam fazer deles mais que antes. As funções eram tantas, pensava, inconformado de não saber todas. Satisfizera sua primeira relação sexual logo na segunda semana de aula, e no verão, já estava apto a conhecer o verdadeiro amor. Sabia-se uma pessoa difícil de arquear sentimentos mais nobres pelas meninas, mas faria dessa, uma tarefa veraneia imprescindível.

Novos horizontes.

Morava na Rua Antonio Jorge, bairro de classe média da Capital baiana. Por mais que tenha se exaustado daquela casa infame e tediosa durante as aulas, nas férias, quando seus amigos voltavam do campo, das plantações e dos lugares onde se podia encontrar trabalho, aquela era uma casa radiante. Proporcionava-lhe deliciosas tardes de sol, praias, e bons ventos que sacudiam as cortinas recém colocadas pelos seus tios. Esqueci de dizer: morava com os tios, mas é uma parte desinteressante e por demais intima pra se discutir nos primeiros assopros.

Aquela era um verão qualquer, de sua amargosa vida. Nem suspeitava Ray que estava prestes a conhecer algumas sensações heterogêneas que nunca, se quer, pressentira.

O batuque do bar ao lado de sua casa o chamou a atenção. Foi conferir, ainda sem apreciar o samba que se fazia por lá. Era uns versos de um moço chamado Noel Rosa, na doce voz de uma cantora regional. Nunca havia percebido as batidas de um pandeiro tocadas tão poeticamente. Gostava da poesia do dia. Dos raios solares, destacava versos e mais versos, alegres, tristes, solitários, e agora estes malandros versos que deslizavam dos raros acordes e pousava sobre as fenomenais pernas de uma garota, como num ritual faraônico.

A garota.

Era delirante como galopeava sobre o chão rústico de Salvador uma moça daquele jeito. Loira, corpo bronzeado, usava um tomara-que-caia laranja, uma saia colada irreversivelmente no corpo, e um scarpin. Peças que nada combinaria a uma mera mortal. Mas não era mera mortal, ainda de longe, tinha certeza o rapaz.

Sambava. Sambava. Descia como que na trajetória de uma mola de metal. No rosto um enorme óculos que deixava tudo aquilo tão esnobe, gracioso e, sobretudo, provocativo. Foi em direção ao bar, donde dançavam mais duas outras moças e um rapaz pouco jeitoso pra coisa. Gostaria de examinar mais de perto a dona, que sacolejava suave para os deuses. Oferecia os gestos e aquela dança para os deuses do ébano, só podia. Os meros mortais não veria poesia ali. A moça talvez também não. Dizem que a delicia é não se saber delicia. Verdade. Tudo na vida é assim. Lá não podia ser diferente.

Ainda inacessível aos seus braços, Ray puxou uma cadeira próxima do balcão, sentou-se com o propósito escancarado de fitá-la, desvendá-la, descobrir de quem se tratava aquela estonteante gazela.

Inalterável, sorrindo agora com as outras mulheres, ela afinava as cordas do coração recém usando de Ray com uma sutil amostra de seu charme. Quanto a ele, o moço Ray, em seus poucos dezessete anos nunca se atrevera a estar com uma dona dessas, exaustivamente sorridente, fantasiosa, ficcional, diria. Idealizou-a: praticou o primeiro pecado. Encobriu-na de mistério: fez se o segundo sacrilégio. Era um pecador na arte de amar. Era pra tê-la chamado pra dançar no segundo ato após sua entrada no bar. Não o fez. “A canção continuava a balançar a garota, e esta, por sua vez, balançava o coração de Ray. Aparentemente as coisas continuavam do mesmo jeito. Mas algo mudou. Não se sabe o quê ainda.

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