Daniel sobe a Avenida Rio Branco, perplexo, sem conseguir esconder a alegria, talvez satisfação de algo que cometera há alguns minutos quando saíra dos escombros de um prédio na Rua Azul, aflito mas com esse sorriso congelado no rosto desde então, irretocável.
Logo mais a frente, um banco de praça debaixo de uma luz amarela quente, capaz de iluminar tudo quanto sob ela estiver. Ele andou devagar e sentou-se, ainda incontido, esboçando a metade do sorriso que portara segundos atrás. Em sua redondeza, vultos de pessoas, alguns sons inexprimíveis e um mundo completamente confuso querendo ser desvendado. Passa outro rapaz, andar espaçado, magro, talvez pálido de medo – daquela praça jazia sempre o perigo iminente de ser roubado – e era tarde, qualquer medo é manifestação de apego pela vida. O rapaz senta-se no mesmo banco que Daniel, como que esperando a hora do encontro, a essa hora já se arrependia de ter marcado num lugar tão inóspito e possivelmente violento.
A noite ardia com sua lua azulada, quase que completamente alagada, muito embora, igualmente as coisas da vida, não satisfaria ninguém que, por ventura, apreciasse uma lua cheia. O ruído dos prováveis passantes se suspendeu. Arremessou-se o silêncio das noites turvas. Os dois rapazes se examinaram, desconfiados, e acenaram alguma cordialidade civilista dos nossos dias. Mas tudo milimetricamente calculado. Pensamentos vão-se e vêm-se, e nada de agradável ou interessante ocorre em trintas minutos.
Reparando o avançar das horas, um deles – creio que Daniel – fez a seguinte abordagem ao rapaz de seu lado:
- Você conhece o sujeito, vira amigo dele, ocupa centenas de horas conversando com ele sobre os mais indiscriminados assuntos pra dez anos depois não receber se quer a consideração de sua presença... – disse, assentindo.
- Desculpe, falavas comigo? – interrompeu quem o leitor poderá chamar de Israel. – eu não ouvi quase nada, estava desconcentrado, refletindo sobre como esse lugar é pavoroso. – falou, diminuindo o som da voz até inundar o ambiente de silêncio.
O silêncio se refaz às custas do medo e do perigo iminente. Um grupo de rapazes passava sustentando em seus braços, uma moça desfigurada e nua. Todos os elementos de uma trama estava ali, mas ninguém podia juntar as peças a não ser você, caro leitor.
- Eu posso afirmar que esse mundo está perdido, e estamos todos desolados, sem ninguém que se possa confiar – disse Daniel com uma mistura de fúria e indignação.
- Eu detesto os homens, são fúteis, vis, cruéis, cretinos – concordou Israel, inconsolável.
Daniel checou de ponta a ponta o sujeito, como quem sente certo temor de existir. Dizia em pensamento: eu hem, sujeito mais estranho esse. Fala como se derramasse palavras ao vento, sem qualquer senso ou sentido. Deve ser um desses comunistas.
- Poxa, os são mesmo – disse Daniel mentindo.
- Não, o problema é que você nunca está convencido de que a humanidade não presta. É um certo sentimento ou instinto da natureza de ser homem, sabe? Covarde, mesquinho. Somos, não somos? – replicou Israel, escarrando de nojo.
- Você deve saber do que está falando, como se chama? – pigarreou, procurando intimidade.
- Eu não lhe conheço, como direi meu nome. – repreendeu Israel sempre na defensiva.
- Desculpe, não te perturbo mais – assentiu Daniel, arrependido.
O silêncio e o frio se incubiram de reaproximá-los, ambos tão alheios àquela madrugada. Aguardavam algo ou alguém que nenhum leitor até então sabe. Quer dizer, sabe o leitor que todos esperam a morte enquanto usam de suas vidas. Mas isso não nos basta. Passou finíssimos dois minutos até eles reocuparem o espaço do contrário do silêncio.
- Sabe, eu fui grosso porque geralmente tenho medo de implacar uma intimidade que não dei. – ponderou Israel, com o olhar absorto.
- Eu fui invasivo também, não costumo ser assim, mas sua fala entrecortada de indignação me pareceu intrigante.
- Tá. Me chamo Israel, moro a duas quadras daqui e lido com a vida da maneira mais saudável possível.
- Sou Daniel, advogado e mantenho um escritório aqui próximo, tenho cara de novo, mas já vivi até demais.
- Que é isso, rapaz. Deixe de fracasso, você tem ar de promissor.
- A depender da área, até sou. Mas não confio muito nas pessoas, e acabo por não me satisfazer com elas. Nenhuma delas. Perdi contato com a família, meu casamento chegou ao fim e os meus amigos estão dentro dessa caixa – abrindo as mãos via-se um maço de cigarros, segurou na outra mão um isqueiro e acendeu com habilidade um deles – vivo anestesiado da vida, sem poder ocupá-la toda por conta dos meus objetivos profissionais. Você é medico?
- Não, os trajes brancos não são nesse sentido. Eu sou engenheiro, uso meu tempo pra construir a morada dos homens.
- Nada disso, a morada dos homens são os vícios – interrompeu Daniel, irredutível, expulsando nuvens de fumaça da boca.
- Você se importa com os vícios, eu os vivo sem pensar. A humanidade os vive sem pensar. - Retrucou o outro.
- Carrego em mim o peso da humanidade. Não falei, escrevo nas horas vagas. E fazê-lo é uma forma de viver meu passado. Já que dele me escorre o que ponho nas folhas e o peso parece menor.
- Não gosto de escritores, os acho arrogantes e pretensiosos em suas histórias. Sempre alimentadas de alguma lição, de um moralismo torto, fúnebre, encerrado.
- Concordo.
- Como poderia ser cordial comigo? Convirja. Argumente contra mim, caro advogado – disse Israel em tom próximo da ironia.
- Não quero. Veja essa iluminação, ela produz sombras distorcidas.
- isso se dá pelo prin...
- Não me importo, quero falar das sombras. Porque elas existem independentes de qual lugar pomos a luz dos olhos? Porque tentam redesenhar o que já está rabiscado, as coisas?
- Você é um sacana, eu preciso me ir. Foi um prazer, aqui está meu cartão. – finalizou Israel ajeitando sua camisa estranhamente branca ao se levantar.
- Se houver motivo eu ligo.
- Ligue sem motivo nenhum.
Ambos se distanciaram. Um para um lado o outro para outro. Caberá ao leitor imaginar o que Daniel estava fazendo antes de ir ao parque e o que Israel fazia lá. Isso não é tarefa minha. Passe bem.
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