Aquele em que decidi tornar-me doutor.

O desafio das escolhas

O que faz alguém cuja vontade de escrever é tamanha, optar pelo direito, uma área qual a escrita é técnica e legitimadora da burocracia? E mais, desejando a arte da escrita e, sobretudo tentando fazer parte dessa arte, primeiro devotar-se a um curso que a arte não alimenta, e que o resultado dele é um profissional subnutrido de criatividade. Um limitado ao parâmetro que sua arte deveria desafiar. O que movimenta pessoas como essa: provocação ou desafio?

Ainda sangrando por dentro, respondo timidamente: Provocação. O que talvez moveu Clarice Lispector e Machado de Assis, retornou para me assombrar e só deixou-me sossegado quando resolvi, de supetão, encarar o direito. Encará-lo de frente. Perscrutá-lo. Extorqui-lo.

O direito nasceu de dois dedos: o primeiro foi um dedo de prosa que tive com minha mãe: falávamos sobre o nosso antigo sonho de formar-me doutor, da medicina. Relembrávamos as tantas vezes que fomos a um consultório e dizíamos, orgulhosos, que tornar-me-ia um grande doutor. Um especialista na pediatria. Sonho infantil alimentado pela rica vontade que as mães depositam no futuro de seus filhos. Foi uma conversa de duas horas. Na mesa intrépida da vovó. Eu, ela e nosso vão desejo antigo. Suspirávamos antecipando a carga e dura noticia de que eu resolvera não ser mais doutor da medicina. Não havia vocação, nem gosto. Havia uma antiga obrigação a zelar, e agora exposta naquela mesa, essa obrigação tomaria da liberdade de tal cumprimento. Eu queria livrar-me daquela fantasia. E necessitava do aval materno. Já que era filho, e prole é objeto de investimento. Seria justo e não somente econômico aquele acerto de contas. Os olhos maternais pregados sobre meu cansaço mostravam-me uma cumplicidade. Faça o que vier a mente, o apoiarei sem decrépito. Faça o que tomou seu gosto. Faça, mas seja doutor!

Após a exclamação maternal ficou claro em que baseava o desejo daquela mulher que clamava-me por satisfazê-la. Enfim, um desengano. Tudo que ela queria era um doutor na família. Alguns diriam o primeiro. Já resolvido as contas, fui escolher o meu curso, na internet, dentre as opções para vestibulares. Fiz três seleções. Primeira para jornalismo, uma paixão rasgante e como qualquer paixão, nova e imatura. A segunda para psicologia, por gosto antigo. E a terceira? Tomado de curiosidade e provocado pelo efeito que esse curso investe em seus estudantes, usei o segundo dedo que me trouxe aqui, escolhi, com a ponta do dedo indicador, o meu futuro: curso de direito. E aqui estou. Provocativo? Nem tanto.

O direito começou de maneira romanesca. Entre os trovões fantasiosos do tribunal [vê-se “A exorcismo de Emily Rose”] e a tranqüilidade econômica [vê-se matéria da Veja], eu insistia em entendê-lo. A ingenuidade foi debruçando-se pouco a pouco sobre os pés gigantes da realidade. Dentro da faculdade, agora estou ciente dos dissabores que acompanham minha escolha. Confesso que tentei um recuo, a princípio. Mas como dizia Nelson Rodriguez: “Os que choram pouco, ou não choram nunca, acabarão apodrecendo em vida”. Melhor que chore agora enquanto há vigor, do que depois que o desengano bater novamente, o balde encher-se até a borda e o leite derramar. A provocação é o melhor sabor. Fazer o que se gosta é bom. Mas, como os modernistas, os jovens não sabem o que querem.

Portanto a realidade contraditória, onde se esbarra a todo tempo em obstáculos, é a escolha mais alucinante. O importante é saber que os olhos brilham de fascínio. Movo-me a partir do meu olhar, às vezes incrédulo, outras, desatento. Porém sempre movimentando-me sob a direção que meus olhos perseguem, meu toque anseia, e meu pensamento atina. Pois fantasia é o recurso fraudulento dos fracos. E a imaginação frustrada é um par de olhos cobertos pelo medo de tentar. Meu dilema é o desafio. E desafiado, irei preferir sempre o amargo acontecimento dos fatos à mentira leviana que se pode produzir com a mente inerte. A palavra “doutor” é desafio, por ora. Porém as coisas se movem e as palavras se concretizam. Numa metáfora simples: “Doutor” ainda é transeunte que espera o trem da realidade. Ah! Realidade…

Bruno Silva
11/12/09

3 comentários:

Suzy Carvalho disse...

tenho uma necessidade de escrever gigantesca, quase a msm de respirar, e direito esta entre as ultimas escolhas a se fazer! .-.

Mariana Gil disse...

“Os que choram pouco, ou não choram nunca, acabarão apodrecendo em vida”. Esse trecho do seu texto me fez refletir muito. Sera que nos tornamos quem somos pros outros ou pra nós mesmos?

Franciele Valadão disse...

Gostei. Belo post.