Um convite para dançar.


O poeta é um farsante que acaba dizendo as mais belas verdades. Carlos Drummond de Andrade
Sem títuloCARTA à Graziela de Sá, sem adjetivos e nem disfarces.

Me ensinastes a pieguice.

O mágico poder que o tempo tem de desnudar as coisas assume sua importância agora quando a sinceridade parece o melhor elemento que uma relação pode prometer. Acho que subestimamos o nosso potencial de amar, de perdoar-nos, e, sobretudo, de nos encarar do jeito que somos, com todo os erros que nós habita e nos forma. Não há vergonha nenhuma em ser do jeito que somos: complicados, por vezes rudes, por vezes sensíveis demais.

E nossas respostas se acumulam desde os tempos mais remotos. Todas as respostas e não respostas só demonstram que nós temos a chance de dialogar sobre as coisas e evoluir na medida qual elas exigem. Falta-nos o esforço de prolongar a dor decorrente das conversas. Falta-nos admitir o sofrer do movimento, da mudança. E há poucas coisas nesse mundo menores do que o medo de admitir. Mas é isso. Temos o potencial de ser uma das menores coisas desse mundo, e isso não nos apequena. Pelo contrário, isso mostra que mesmo tendo essa alternativa, ainda assim, conseguimos contorná-la e escolher o que é melhor para o transcorrer da vida.

A vida, para o cocheiro ou para o sujeito que dirige o trem não é menor pelos desafios que eles enfrentam em suas funções. Dirigir a vida, isso sim é doloroso, ainda que necessário. Somos mais que coadjuvantes de uma história qualquer. Somos protagonistas de nossas tramas, atores centrais cujos papeis não podem ser substituídos. Você, Graziela de Sá, não poderá ser substituída pela menina Liesel (A Menina que Roubava Livros) quando rouba de mim sua presença. Nem eu poderei ser Daniel quando tenta percorrer os maiores mistérios dA Sombra do Vento que balança esse cabelos ruivos - que suponho agora negros -. Então, se apesar da tentativa, não somos insubstituíveis para a película pessoal que compomos, mesmo que teçamos mal certas escolhas, teremos de admitir os frutos destas e fazê-lo da melhor forma possível, sem medo de recorrer a erros.

O medo. Volto a falar dele. Ele que nos tornou tão imputáveis para tomar qualquer iniciativa. Esse medo que nossos pais estimularam, dando aos outros sujeitos, um ar monstruoso. Pois é. Somos monstros de nós mesmos. Como disse Sartre, quase nunca conseguimos domesticar as ações e reações que os outros nos proporciona. E isso torna certas respostas insuportáveis. Para cessar elas: censuramos as reações alheias ou aceitamo-la do jeito que são dentro do frasco da sinceridade.

Até que se rompa o vidro que separa as fraquezas e inibições do que exprimimos para o outro. Quando o outro nos invade, avançando as portas de nossa alma, esse outro torna-se parte de nós. Você é parte de mim(perceba meu sorriso envergonhado). Parte imaculada e gestada apenas pelo meu imaginário. Ai que ta. Você sobrevive, involuntariamente, no meu imaginário e isso torna as barreiras do vidro ainda mais resistentes. Rompa, portanto, essas barreiras. Mostre suas fraquezas e entregarei as minhas em suas mãos. Estraçalhe o vidro que existe entre o que imagino e o que você é, e prometo invadir, sutilmente, os recônditos de seu ser. Até onde me for indispensável. Até o seu limite. Mas construa um repouso para mim, dentro de você. Farei o mesmo.

Eu, contaminado com meus imperativos decorrentes do lugar onde estou, tento maquiá-los. Tragicamente em vão. Meus verbos estão expostos a claridade de minhas intenções. Quero você de volta. Mas não agora, não imediatamente, não no beijo roubado dos amigos que não contêm suas emoções. Quero-na racionalmente. Porque sei que a razão não está de um dos lados, senão dos dois. E isso me faz querer possuir uma amizade mais madura, digesta, mesmo com suas futuras intempéries.
Sem títuloNa pagina 200 do livro A Sombra do Vento tem uma frase que Bea diz para Daniel que cabe bem nessa nossa história, que mesmo irrecuperável, ultrapassa o limite do tempo: “Tudo isso faz parte de alguma coisa que não podemos entender, mas que nos fascina”

Pensando profundamente na amizade fascinante que Deus separou para nós dois, lembro-me de uma passagem de Moisés perante a Sarça ardente sem se consumir e das palavras imperativas que Deus proferiu: “Retira as sandálias de seus pés que o solo que pisas é santo”. Eu penso logo em seguida. Será esse um argumento fatal? As palavras de Deus nos revestem de verdade e de amor, a ponto de deixar de lado (ou melhor, deixar para trás) as outras mazelas de uma relação? Ou será que nossa amizade custa alguns centavos – metaforicamente - de tempo que perderemos consumando mais brigas?

Essa carta demorou. De fato. Pode ser tarde. Será que anoitece no mundo dos perdões? Eu me valho dos versos de Drummond ao adiar tanto essas letras escritas no meu peito a tantos dias atrás. Acho que no seu aniversário comecei a fazer a leitura de minha alma acerca da situação. Mesmo assim, uso de Drummond para validar essa demora tão produtiva. Ele dizia que antes de escrever, é necessário conviver com seus poemas. Só se mora com os poemas, no silêncio. Antes do nascer da palavra há um sabor de silêncio que precisa ser solvido. Há sempre um silêncio íntimo a espreitar os versos verdadeiros.

É uma escolha sua: esquecer-me ou não. Mas não é justo tornar irrecuperável os rascunhos que construímos, porque, por mais que tenhamos uma vida juntos, não concluímos história alguma. E nem estamos prestes a concluir, suponho, já que o tempo de duração da vida é desconhecido para todos nós. Só que agora, quando as escolhas nos são necessárias, é preciso ter a sabedoria de esboçar as melhores reações. É tempo de meio silêncio/ de boca gelada e suspiro,/ de palavra indireta,/ aviso na esquina./Tempo de cinco sentidos num só. (Carlos Drummond de Andrade)
Se mesmo assim, você optar, com muita força de vontade, por me esquecer, deixo-lhe os versos que Mario Quintana escreveu para nós dois: se me esqueceres, só uma coisa, esquece-me bem devagarinho. Nessa lentidão, for você capaz de me extinguir, feito como eu havia tentado fazer contigo. Peço-te, fale isso baixinho comigo para que eu continue negando lembranças suas para minha memória e alimentando meu esquecimento.

Para finalizar, trago as palavras de mais outra pessoa que nos é conhecida. Faço-o por que sei que é mais fácil sobrescrever os versos alheios do que tirar de nossas letras a conformidade com o real. Encerro, sem esgotar o assunto, com as palavras que ouço imaginariamente de sua voz, talvez rancorosa, talvez ingênua: "Um menino. Aquele ar espantado. Um pouco trêmulo. Cigarro atrás de cigarro. Tenho medo de tocá-lo. De quebrá-lo." do saudoso Caio F. Esse sujeito que incrimino como cúmplice de nossa continuidade, que embora no silêncio, persiste em nós, em nossas cartas, em nossas palavras, em nosso âmago.

Convido-te agora para dançar ao som lancinante da poesia. Não sei dançar, minha maneira de dançar é o poema. E é entre as palavras que arrisco o passo como este que estou dando. Boa noite, senhorita. Com apego de seu
Bruno

A música se chama NÃO VÁ EMBORA. E me lembra uma pessoa que perdi, por não dizer simplesmente essas palavras.

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá, gostei do texto, muito bom, por sinal ja li ambos os livros os quais sita os personagens, Liesel de A Menina Que Roubava Livros, adorei, muito boa as aventuras delas com o amigo inseparável, as pulanças (isso existe?)de janela só para ler, confesso que me vi espelhado em algumas de suas atitudes, a Daniel, de A Sombra do Vento, também de leitura muito prazerosa.

Pobre esponja disse...

Nada como o amadurecimento, para enxergamos melhor o símbolo das coisas.

abç
Pobre Esponja