Pássaro Negro: paixão, tragédia e traição

Igor parecia um garoto comum, de vida simples, embora filho de mãe solteira. Tinha verdadeira paixão pelas letras e por melodias e muita vocação em compô-las. Arranhava o violão. Quando tinha quatorze anos ganhou seu primeiro instrumento e tornara-se obsessivo em se aperfeiçoar.

Com as primeiras tardes tocando no passeio de casa, vieram os primeiros amigos, a primeira namoradinha, e o primeiro beijo foi entre um acorde e outro. Foi inevitável arranjar outros amigos, de várias gerações, que cultivavam a mesma paixão sonora. 

Um deles se chamava Henry, um Uruguaio recém chegado ao Brasil, flautista e dependente dos saraus, da boemia e do prazer. Tinha trinta anos de idade quando se mudou para a cidadezinha litorânea carioca e trouxe consigo sua mulher Vera, geniosa e cúmplice de suas aventuras. Era um homem belo, apesar de seu ar despreocupado. Despendiam de sua cabeça cabelos enegrecidos que pareciam fiapos colados e lisos, os olhos abotoados no rosto pareciam semipressionados e dava a impressão de alguém muito observador. De aparência notável, corpulento de um cara que já foi musculoso, mas que engordou ao longo do tempo. Não era gordo, tinha as pernas e os braços como toras bem polidas, imensas, mas ágeis. E um ouvido finíssimo para as artes musicais.

Não demorou pra reparar o talento e a obsessão com que Igor executava as notas no violão nas tardes tristes da cidade, no pôr-do-sol da Pedra Corada, onde se reuniam alguns curiosos e apreciadores. E tão logo se aproximou do rapaz consolidando uma amizade. Era uma relação bem intensa, entre palpites sonoros e muita identificação. Igor, mesmo jovem, tinha a maturidade musical de raros. Por outro lado, Henry tinha a leveza de um garoto órfão do tempo. A parceria emplacou rapidamente e começou a incomodar a família do rapaz, sobretudo porque seu rendimento na escola diminuiu após Igor praticar a arte do violão na casa de Henry.

Foi num destes encontros que Igor conheceu Vera, uma mulher loira, o rosto branquíssimo, parecia uma jóia fina, os olhos verdes, a testa e o queixo contornados por algum artesão bem habilidoso. Sua personalidade era de uma mulher imponente e escorregadia, e seu ar de quem era desapegado de materialidades podia ser confirmado no jeito descontraído de Vera vestir suas longas saias indianas e abaná-las quando menos se esperava. Num surto de prazer, exibicionismo e provocação, Vera erguia uma porção de seu vestido com malícia e genialidade. Não demorou para que Vera poluísse os sonhos eróticos de Igor, que nem iniciado era nos prazeres carnais, porém reprimia um apetite grego, quase pecaminoso.

Em um sábado chuvoso, Igor seguiu para a casa do velho amigo com algumas composições em mente para mostrá-lo. Teve sua expectativa frustrada quando recebido por Vera, descobrira que Henry havia feito uma viagem e não retornaria no mesmo dia. Vera estava vestida especialmente linda. Tinha um laço decorando a trança dos cabelos que desciam por sua costa nua. Envolvida em um vestido azul, as longas pernas se destacavam e deixavam à mostra um bronzeado recente nos seios que o garoto não evitava olhar. Apercebendo a situação, Vera o fez entrar, sentar, beber vinho, tocar alguma coisa, tudo com sua persuasão demoníaca e seu charme experiente e lascivo.

Poucos minutos depois, encontravam-se os dois abraçados no sofá, completamente nus. Ela, cavalgando em cima do parrudo garoto e gotejando de suor. Descia e subia como numa linda e percussiva composição. Quem olhasse de fora teria a sensação de contemplar uma pintura formada por luxúria, movimento e desejo. E rompeu-se ao fim da tarde, o manto suave e ensolarado, liberando o altar do céu para a lua.

Seguiram-se meses nessa situação de olhares reprimidos quando Henry estava presente, e trocas quentes de carícias quando os amantes encontravam-se à sós. Vera simplesmente incendiava o rapaz, e este continuava a freqüentar a casa sem receio e parecia até ter alimentado a admiração que mantinha por Henry. Para Igor, passar as tardes, ainda que furtivas, com Vera, era reencarnar o próprio Henry. Era uma maneira de homenageá-lo, de ter o Henry em seus gestos, numa lancinante e esfomeada ilusão. 

Aconteceu o óbvio. Henry descobrira, embora escolhera, por incrível que pareça, guardar em segredo o caso dos amantes. Continuava com o mesmo tratamento dócil, intenso e apaixonado pelo rapaz, ensinando-lhe tudo que aprendera, todas as notas, partituras, composições, como um mestre a ser substituído por seu aprendiz. Começara ali a rotina de forjar viagens para deixar que Vera mantivesse as relações libertinas com Igor e numa dessas Henry cometeu o despudor de observar o encontro, com um prazer masoquista de sentir-se enganado, traído. Tais acontecimentos resgatara até um certo brilho – ainda que doentio - à relação de Henry com sua esposa. 

Com o verão se aproximando e o ritmo turístico da cidade aumentando, a freqüência de Igor foi reduzida. Não havia mais tantas sugestões musicais. Igor estava um craque no violão e já partira para outros instrumentos, que utilizava com maestria. Às vezes criando sonoridades mais aprazíveis que o próprio Henry podia compor. Henry repetia ao garoto, “você anda muito entendido, parece mover com as mãos os sentimentos humanos” e completava, perplexo, “já pode morrer, meu pequeno Buckley”.

No dia seguinte Henry comprou uma arma. Estava possesso ao ter sido atropelado por alguém que inventou, lapidou e aperfeiçoou até com os lábios vaginais de sua esposa. Chamou Igor para um último repasse em algumas canções que estavam ensaiando para as próximas performances. O garoto chegou à casa nauseado de desconfiança pelo ruído estranho da voz de Henry dizendo ao telefone: “toque pela última vez para mim, meu Beethoven”, com paixão e demência ao mesmo tempo.

Quando Igor chegou percebeu que Henry cantarolava Night Flight, do Led Zeppelin e os dois finalizaram a canção dizendo os versos simultaneamente, “he sat laughin' as he wrote the end's in sight”. O garoto sentou ao chão, ainda cambaleante, para desenhar as canções no instrumento, e ficou imóvel ao constatar na cintura do seu mestre uma pequena arma de fogo, levemente disfarçada pela camisa laranja colocada por cima como que às pressas. Não pensou duas vezes. Segurou com brutalidade o braço do violão, desferindo e espatifando o violão contra o corpo de Henry, matando-o imediatamente à pauladas. Harmoniosas, frementes e finais. “O último dueto” pensou Igor involuntariamente.
Restou ao canto da sala o violão com as cordas desarranjadas e manchadas de sangue, como um moribundo estirado e imóvel, sem nenhum ruído.

Muitos anos depois Igor é professor de piano de uma escola musical na cidade Uruguaiana, Rivera. É seu primeiro dia, olha atentamente pra seus alunos, ansioso. Em um dos cantos da sala, repara um garoto de seus dezessete anos, com olhos agudos, negros, pregados no rosto, os cabelos como cordinhas escurecidas e lisas no teto capilar, o rosto branco e levemente gordo, os lábios inclinados para fora e bem rosados, abaixo dos olhos uma pintura natural que dava-lhe um aspecto faraônico,  o tamanho é médio e as mãos aparentavam ser duas almofadas persas suaves e sutis. Seu nome é Henry. Era a própria reencarnação do anterior. Apontando o piano, Igor convidou o menino Henry e perplexo disse: “Meu Beethoven, toque para mim!”.

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