A margem.

Afogamento Escrevo agora para que o moço não se enforque dentro de mim. Não quero despejar ninguém atingido de dentro desse corpo otário, que dá pouca razão pra quem morre dentro dele. A tinta da caneta escorre devagarzinho do tubo sufocado de azul. Eu nunca vi sangue azul. Mas nunca vi tantas outras coisas, que azul sangue é apenas mais uma delas. Eu já vi coisas que fazem sentido, para os outros, e que eu tomo para mim, e sigo-os como se minhas convicções as fossem. Convicção é bobagem, diz o moço dentro do corpo, otário, vacilão, querendo se manifestar. Convicção é bobagem para quem não tem pernas nem braços, para quem não precisa a partir delas, se orientar. Crê então no nada que te invade e começa a expelir a morte que te envolve, para que o nada te cerque e te engula, absorva de ti o nada que te compõe, jovem rapaz. Escrevo com piedade, para que ele não morra. Mas há tanto sintomas de que sua morte se aproxima, parece rondá-lo, o dragão da morte. Talvez nem haja o que fazer para roubá-lo desse destino trágico, porque, mesmo escrevendo e relutando devolvê-lo, ele parece estar às margens de mim, e minha tinta azul o alaga como se o mar sangrento fosse. Morre afogado, o coitado.

2 comentários:

Rubens disse...

gostei =D

Graziela Sá H. disse...

Nunca viste sangue azul? Então precisa urgentemente causar-me uma ferida física pra ver jorrar de mim um líquido espesso e cianótico.
Que leitura profunda, meu amigo. Consigo ouvir os gritos da sua alma daqui. Sem dúvida tu és um homem que ousa e se permiti ir ao mais profundo da dor. Mas penso que ao fazer isso você busca tirar do incompreensível seu verdadeiro sentido.