Cínica e encantadora...

NOME PROPRIO03       Finalmente, perto das dez da noite, ela ligou de volta. Dava para ouvir barulhos no fundo. Música, vozes abafadas. Onde ela estava? Num bar? Aquela possibilidade me assaltou como uma baforejada, denunciando alguma coisa.

      Sua voz estava gravemente entrecortada de melancolia, insensatez, talvez até um pouco mais alterada do que nas outras tantas ligações que tivemos, sempre um banquete de vozes macias se alastrando pelas linhas telefônicas.
      Nessa ligação foi diferente. Havia algo de rugoso em suas palavras culpadas, tão imensamente mergulhadas no desespero a procura de perdão. Perdão esse que, mesmo que eu tivesse, não poderia ofertá-la. Parei e pensei, será que estou sendo amargo? Talvez não. Acho extremamente justo pesar as coisas que nos machucam antes de perdoar. Não pra usar pretexto e adiar o perdão, mas pra ser sincero, convicto e não coberto pela desfaçatez.
      Eu estava debaixo do lençol, era tarde. Tão tarde que suas primeiras palavras queriam afobadamente explicar porque o avançar das horas não impediu a ligação, muito pelo contrário, a menina da madrugada achava conveniente conversar essas coisas noite adentro. É quando voz encontra paz e solidão pra seguir seu rumo, e as coisas parecem mais precisas quando não há barulho, dizia em tom insolente.
      Espere. Eu comecei essa história justamente com a descrição reclamosamente indefensável, de que o telefonema foi por demais ruidoso? Ah! Ela é incoerente. Ordinariamente incondizente com seus pensamentos. E não compreendia essas suas imperfeições. E tragicamente, isso a transformava na mais louvável mulher. Eu adorava ouvi-la reclamando de meu saudosismo inútil, enquanto ela mesma ouvia músicas da década passada, em seu player. Era fantástica essa sua inabilidade pra manter discurso e comportamento retinhos um do lado do outro. Era debochado também... e o deboche é um bom tempero.
      Ela me ligou uma hora daquela, de seu estúpido ambiente barulhento, acredite, pra me pedir desculpas por ter desligado na minha cara. Eu sei que eu aumento as coisas. E já era alternativa pirraçá-la numa próxima ligação, ou simplesmente deixá-la sem mim por uns dias. Embora ela, com vagaroso insulto, disse que não há algo mais imperdoável do que desligar o telefone na cara de um amigo. Assustado eu incompreendi, por que era frequente ela desligar na minha cara, comecei a desconfiar e quando me dei por mim havia pronunciado: você está num bar e muito bêbada, aposto.
      Suavemente, como se tivesse dedilhando sua voz, e até o barulho se interrompeu, ela falou melódica. Estou sim, mas não torne minhas palavras menos encantadoras do que elas são. Eu estou bêbada e você está sonolento, senão lerdo.
      Pensei bem e numa fração de segundo, (como os pensamentos chamados bons perdem a validade horas depois) num instante respondi diligentemente. Você é tão cínica quando bebe. Boa noite, beba menos.
Bruno Silva

6 comentários:

Gilson Alves disse...

Olá Bruno!
Bom pensei bem no que te pedir para escrever... Confesso que não queria te limitar com um tema, mas queria que escreve sobre algo que eu mesmo gostaria de escrever... Então vamos fazer o seguinte: Estou te sugerindo três temas e fico honrado que escolhe entre eles.
1 - Maturidade
2 - cumplicidade
3 - Nobreza

Fica a sua escolha amigo!

Gilson Alves disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gilson Alves disse...

A propósito seria melhor que a gente conversasse por email ao invés de comentário né? hehe

olha o meu ai: gilson.alvessouza@gmail.com

Deco disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...

Bem intimista esse texto eu achei, só podia ser, né! É a cara do teu Blog!!! Valeu!

Anônimo disse...

Tô te seguindo!