A finitude da vida e baladas de Seu Jorge

Seu_Jorge_CoachellaSeu Jorge fez show em Ilhéus, no sábado passado. É mesmo um espetáculo mágico, ardente e poético. A voz grave e enfeitiçada do intérprete desafia qualquer molejo, swing e sacode a alma. É um show pra vibrar de alegria, se emocionar, e também inspirar o romantismo dos casais, enfim, agrada a todos.

Prejudicado das vistas, sem poder vê-lo nitidamente - pela falta de óculos -  ainda assim foi um show pra se sentir incluido numa raça humana doce, respirando justiça social,  limpando o empoeirado amor entre os povos, e uma chance impactante de ter sob seus olhos, a certeza de alguém que veio de lá do morro e alcançou a fama internacional. Pra ser mais claro: alcançou a fama como um grande artista, e não é todo mundo que tem essa sorte. Mas será sorte, talento, carisma, ou uma mistura genuinamente brasileira que deu certo em Seu Jorge? Eu acredito que seja essa miscenação que tornou a poesia do intérprete de "Burguesinha", o maior sucesso. Não é um “malandro” jeitoso que vende um suposto espirito de favelado vencedor de obstáculos como a discriminação, o estigmatismo e o forçado anonimato geográfico. E sim um cara marginalizado que desbravou o asfalto, tocou no olimpo do circuito artistico e veio pra ficar, com seu jingado fatalmente doce. Essas são as coisas que fazem o presente ter o gosto de minutos finais.


Em todo aquela atmosfera que Seu Jorge inventava, no absurdo de sua poesia jingada, jingosa, gulosa, transmitia a doce finitude da vida, sim, mas não parou por aí. Tenho que narrar um fato acontecido depois do espetáculo que não passou alheio aos meus frágeis olhos - porque a finitude torna tudo, inclusive a visão, frágil. Estava eu, por volta das sete horas da manhã, aguardando o carro que nos levaria de volta a Itacaré, quando, num sobressalto, chega à mim a imagem de um senhor, acompanhado de sua familia, desabando ao chão, trêmulo. O homem começa a se contorcer, a lingua o impedia de respirar, convulso e estanque, ele foi se desmanchando, perdendo a cor - como também a vida nos seus segundos finais, e sob o tormento de pequenos e sucessivos desmaios.
Instalou-se, “ao som das dilacerantes sereias da ambulância”, aquele misto de tensão e desespero por parte dos familiares e de quem assistia, expectadores familiarizados com a morte, mas contraditoriamente ainda surpreendidos por ela. A morte nos intriga, né? Não apenas a passagem para o mundo que virá - se virá! - mas a antecipação da ausência, a angustia da perda, o desconsolo, o despreparo. Tentei auxiliar de alguma forma, ao menos concedendo solidariamente alguma segurança à mãe daquela familia, que saltitava de impotência e pressentimento. O medo da morte deseja nos engolir... mas ainda mais brava e latente é a própria morte avizinhando nossos conssanguíneos. Se o leitor já perdeu alguém sabe disso. E deve saber também como salta da própria morte, dialeticamente, a lição de viver, cada vez mais, cada vez melhor... E é quando testemunhamos fatos como esse que me defronto com a declaração que John Donne fez acerca dos homens, que nenhum deles era uma ilha, isolada, autosuficiente. Pelo contrário, “a morte de qualquer homem nos diminui por que fazemos parte da humanidade”.

Passado alguns minutos e o senhor já sob os cuidados médicos, me pego acreditando que não é incompatível sentir tamanha alegria e tamanha angústia numa noite só. O homem já socorrido, sendo levado pelos enfermeiros - respirando melhor na insistencia de viver - e a sua esposa que estava aflítíssima há pouco, agora louvando a um Cristo que morria por ela naquela mesma data, domingo de páscoa, para expiar suas dores, seu sofrimento, suas lamentações... Todos já com os ânimos mais serenos, numa calmaria apascentada pelo recurso medicinal - que no fundo sabemos ser paleativo.


Então chegava a minha hora de trafegar mais uma vez, solitário, milagrosamente feliz, por essas estradas falsamente calmas, falsamente tranquilas, que são - nada mais nada menos - os caminhos da vida que percorremos todos dias, tomando curvas desastrosas ou deixando a vida tropeçar nessas pequenas epifanias, alertos de que podem ser esses os minutos finais. Naquela hora, mirando o sol renacer - ou seria ressucitar? - a cidade de Ilhéus se acender, o mar azul erguendo bem alto os sonhos; os amores ocupando o coração dos apaixonados no despertar silencioso, desejosos de que aquele alvoreçer dure uma eternidade; foi então que lembrei dos versos verdejantes de Seu Jorge, e percebi como pode ser fugaz viver.

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