Tragédia e ingratidão

nelson-rodriguesIngratidão perpétua, eis a condenação. Seria eu ingrato caso em algum momento, ainda que roucamente, não gritasse o nome de Nelson Rodrigues nesse blog. Até porque mesmo não tendo lido toda sua obra, me sinto familiar da maneira com que o dramaturgo olha a vida e sente a fatalidade das coisas. Para manifestar, portanto, minha admiração pelo Nelson Trágico Rodrigues que trago ao raso um de seus contos… aproveite!

 

 

  TRAGÉDIA

Não teve pressa. Durante quarenta e oito horas, debateu-se em dúvidas medonhas. Trair era ou devia ser facílimo; resta­va, porém, a pergunta: “Com quem?”. Passou em revista todos os amigos e conhecidos. Ia excluindo um por um, através de um processo eliminatório. Acabou se fixando num amigo do marido, um tal de Mascarenhas. Telefonou-lhe, sem dizer quem era. E o outro, ouvindo uma voz feminina, inflamou-se. Queria um encontro imediato, num lugar assim assim. Ela foi bastante fe­minina para adiar a entrevista. Depois de uns quinze dias de te­lefone, Jacira submeteu-se. O outro marcou hora e deu o ende­reço de um apartamento que mantinha para tais aventuras. Duas horas depois, ela estava lá, apertando o botão da campainha. O próprio abre e Jacira invade o apartamento. Ele parece atôni­to, não compreende. Jacira percebe nos seus lábios uma expres­são de descontentamento quase cruel. Espera uma palavra, uma iniciativa. E como ele não faz,nem diz nada, ela o interpela: “Então?”. O fulano balbucia:

— Desculpe, mas não é possível... Sinto muito... Des­culpe...

Pela primeira vez, Jacira sente parcialmente a verdade. Fo­ge dali, como uma criminosa. Em casa, no quarto, coloca-se dian­te do espelho grande. Revia-se, de corpo inteiro. Compreende tudo. Compreende por que fora quase escorraçada. Coincidiu que, nessa noite, bêbado outra vez, o marido a ultrajasse com a palavra: “Bucho! Bucho!”. Teve ódio, um ódio inumano, indiscriminado, contra si mesma, contra o marido, contra o mun­do. Esperou que Herivelto mergulhasse no sono de embriaga­do. Então, já serena, derramou álcool em cima dele e riscou o fósforo. Por entre chamas, ele se revirava, se contorcia, como se tivesse cócegas. Fugiu, uivando, perseguido pelas labaredas. Vizinhos atiraram baldes d’água em cima dele. Herivelto mor­reu, porém, ali mesmo, nu e negro.

1 comentários:

CAMILA de Araujo disse...

Nelson Rodrigues é um gênio. Revelou sem se prender a conceitos ou morais, a vida como ela é, retratando o que existe na nossa sociedade de forma nua e crua.

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